domingo, 23 de julho de 2017

O pensamento selvagem de Lévi-Strauss


Pense na cena: o rei da França e um cacique tupinambá, frente a frente, perante damas e cavalheiros da corte, em Paris. A cena inusitada se deu no século 16, quando os franceses haviam estabelecido no Brasil a sua efêmera França Antártica e o rei Carlos IX, desejoso de conhecer os hábitos estranhos de seus novos súditos, levou um chefe e dois guerreiros indígenas para a Europa.
Foi uma sorte que entre cortesãos e servidores de Sua Alteza estivesse presente o filósofo Michel de Montaigne, que descreveu os acontecimentos no livro Ensaios. Graças a ele ficamos sabendo que os chamados “selvagens” ficaram tão espantados quanto os franceses. “Eles notaram”, escreveu, “que há entre nós homens bem fornidos que gozam de todas as comodidades da vida, enquanto às suas portas mendigam os homens da nossa outra metade, emagrecidos pela fome e pela pobreza.”
As memórias de Montaigne diferem do relato que o conquistador Nicolas Durand de Villegaignon enviava da América: “Essa gente é muito arisca e selvagem, não tem nenhuma cortesia e é muito diferente de nós; não têm religião, não conhecem a honestidade e não sabem distinguir o certo do errado; são animais com figura de homens”.
As duas narrativas revelam faces do comportamento que os europeus teriam frente aos povos do Novo Mundo: o colonizador, de olho nas riquezas naturais, sente-se filho de uma civilização superior, com direito a explorar os “selvagens”. O filósofo sabe não ser tão fácil distinguir o certo do errado e aproveita o contato para conhecer melhor não só a espécie humana, mas a própria civilização.
Claude Lévi-Strauss, que criou, já no século 20, as teses da moderna antropologia, está no segundo caso. Um pajé tupi poderia dizer que o espírito de Montaigne continuou a inspirá-lo. O principal herdeiro dessa linhagem tornou-se o cacique do chamado estruturalismo. Mas trata-se de um descendente rebelde. Em Montaigne, o contato com os tupinambás inspirou o sentimento de que “por certo, o homem é um tema maravilhosamente vão, diverso e ondulante; não é apropriado nele fundar um juízo constante e uniforme”. Lévi-Strauss aceitou a primeira parte, mas desafiou a segunda. Para ele, a antropologia devia buscar, por trás da diversidade da espécie humana, o que ela tem de universal.
“Esta é a evolução típica a que assistimos, desde o Egito até a China, no momento em que a escrita faz sua estreia: ela parece favorecer mais a exploração dos homens do que o seu estabelecimento.“ Cadiueu – Mato Grosso (Marcelo Zocchio)


Estruturas

Essa busca, porém, não poderia se basear em preconceitos ocidentais. Era preciso romper com as teorias evolucionistas do século 19, segundo as quais as sociedades ditas “primitivas” representam estágios ultrapassados pelo Ocidente no caminho do progresso. A saída era comparar as mais variadas sociedades em busca das chamadas “invariantes”, aquilo que todas têm em comum. Por exemplo: o tabu do incesto, a capacidade de comunicação, a necessidade de preparar os alimentos e a interação com a natureza.
Estudando como esses aspectos se manifestam em cada sociedade, Lévi-Strauss pretendeu decifrar as relações entre o ser humano, a natureza e a cultura já em sua primeira obra clássica: As Estruturas Elementares do Parentesco, de 1949. A inspiração para as “estruturas” veio da linguística. Para o antropólogo, as sociedades se organizam como se fossem frases ou modos de falar, que podem ser diferentes entre si, mas obedecem a um mesmo código ou sistema universal.
Essa concepção foi revolucionária, pois rompia para sempre a tradicional dicotomia entre natureza e cultura. O estruturalismo refutou a oposição entre esses termos ao mostrar como a cultura é uma produção – e não uma negação – da natureza.
“A música e o mito são linguagens que transcendem, cada uma à sua maneira, o nível da linguagem articulada.“ Bororo – Mato Grosso (Marcelo Zocchio)

Tristes trópicos

Se os brasileiros do século 16 foram até Montaigne, Lévi-Strauss veio até os do século 20. Na década de 30, a recém-criada Universidade de São Paulo (USP) convidou o jovem Lévi-Strauss para a cadeira de sociologia. A aventura transatlântica mudaria sua vida e a história das ciências sociais.
Claude Lévi-Strauss nasceu em Bruxelas, na Bélgica, em 1908, filho de judeus de origem francesa. Seu pai era um pintor e o ambiente em sua casa era marcado pelo culto às artes, à poesia e à música. A Primeira Guerra Mundial marcou sua infância e quando ele chegou à Universidade de Paris, em 1927, pouco restava da confiança européia nos ideais de progresso da civilização ocidental.
Formado em direito e filosofia, Lévi-Strauss lecionava num liceu quando lhe ofereceram o cargo na USP. Nos finais de semana, disseram-lhe, poderia visitar aldeias indígenas nos arredores da cidade. Imagine sua decepção quando chegou a São Paulo, que em 1934 já era a mais urbanizada das cidades brasileiras. Ele não se deu por vencido e aproveitou suas férias na Universidade para viajar pelo interior do país. Conheceu os cadiueus, junto à fronteira com o Paraguai e visitou aldeias bororos, no Mato Grosso do Sul. Foram cinco meses de contato direto com grupos indígenas. A temporada no Brasil durou até 1937 e está narrada no livro Tristes Trópicos, de 1955.
Em 1938, com apoio do governo francês, Lévi-Strauss retornou ao Brasil. Dessa vez, a base foi Cuiabá e ele visitou os nambiquaras do Mato Grosso e os tupi-cavaíbas do Alto-Machado, no Amazonas. Mas os tambores do Ocidente começaram a soar e Segunda Guerra fez com que ele regressasse à França para o serviço militar. Quando os alemães invadiram o país ele partiu para Nova York, onde estava a nata da intelectualidade européia, com quem passou a conviver e debater suas idéias. Foi a conclusão de sua formação teórica. Na juventude, os interesses intelectuais de Lévi-Strauss foram a geologia, a psicanálise e o marxismo. De Sigmund Freud, ele herdou as teses sobre o inconsciente e a certeza de que a combinação de elementos mais insólita (como os sonhos) é sempre passível de uma interpretação. O legado de Karl Marx não foi apenas a crítica da civilização ocidental, mas a idéia de que é necessário organizar os dados da realidade numa teoria original.
Anos depois, ele passaria a criticar vários aspectos da psicanálise e do marxismo e abandonaria os estudos de geologia em troca de uma paixão pela botânica e pela zoologia. Mas todos esses interesses marcaram o estruturalismo. “Os três demonstram que compreender consiste em reduzir um tipo de realidade a outro; que a realidade verdadeira nunca é a mais patente; e que a natureza do verdadeiro já transparece no zelo que este emprega em se ocultar”, escreveu.
“Enquanto os brancos proclamavam que os índios eram animais, os segundos contentavam-se em suspeitar que os primeiros fossem deuses. Em nível idêntico de ignorância, o último procedimento era, com certeza, mais digno de homens.“ Tupi-cavaíba – Amazônia (Marcelo Zocchio)

Signos e mitos

Em Nova York, enquanto a Europa mergulhava na barbárie, o clima intelectual era de efervescência. Lévi-Strauss passou a frequentar o grupo dos surrealistas – como o poeta André Breton e o artista Max Ernst – e familiarizou-se com as pesquisas de Franz Boas, a quem Lévi-Strauss sempre reconheceu como o verdadeiro precursor do estruturalismo. Primeiro, porque foi o alemão radicado nos Estados Unidos quem afastou de vez da antropologia o etnocentrismo – a presunção de superioridade ocidental –, instituindo a perspectiva relativista, segundo a qual é necessário entender as outras culturas sem impôr-lhes os valores da cultura ocidental. Mas principalmente porque ele era linguista e concebia a gramática como uma “estrutura subjacente” da linguagem, inconsciente para os falantes.
Mas o encontro mais importante desse período foi com o linguista russo Roman Jakobson, seu amigo e interlocutor por toda a vida. Ele e Nicolai Troubetskoy tinham desenvolvido as idéias do suíço Ferdinand de Saussure sobre a linguagem. Eles mostraram que um fonema – a menor unidade linguística – só é significativo quando relacionado a outros fonemas, formando sílabas e palavras. De forma análoga, Lévi-Strauss acreditava que os traços culturais de uma sociedade (mitos, rituais, práticas alimentares etc.) só podem ser compreendidos se analisados em conjunto. Sob o impacto dessa perspectiva estrutural, Lévi-Strauss formulou sua própria maneira de compreender o homem. Para ele, o que distingue o ser humano dos outros animais é o uso de símbolos para se comunicar. Essa sintonia com a linguística serviu-lhe também para o perfil do antropólogo estruturalista.
Ele não se preocupa com as particularidades de cada grupo humano: seu objetivo não é conhecer uma sociedade específica, mas o que há de universal em todas elas. Há em todas as sociedades, por exemplo, sistemas de parentesco e restrições matrimoniais. Trata-se de um fenômeno humano tão universal quanto a linguagem.
Lévi-Strauss estudou tais regras como se fossem signos articulados num processo de comunicação das alianças entre grupos sociais. O resultado foi uma nova compreensão do incesto, que refutou as explicações biológicas ou morais. O mais importante não é a proibição de manter relações sexuais com certas mulheres (como a mãe ou a irmã) e sim a permissão para tê-las com outras. A interdição de umas permite a circulação de outras e assim constitui alianças fundadoras da vida social. Por isso, o sistema de parentesco é visto como um artifício “por meio do qual se cumpre a transição entre a natureza e a cultura”.
O estudo sobre o parentesco – um dos temas tradicionais da antropologia – foi uma espécie de prova de fogo do estruturalismo e Lévi-Strauss passaria a testar seu método numa área menos explorada: a mitologia. Num artigo de 1955, “O Estudo Estrutural do Mito”, ele afirmou que os mitos não podem ser estudados isoladamente: “Um mito é composto de todas as suas variantes”. Era preciso pesquisar como as narrativas tradicionais passam de uma sociedade para outra e vão se transformando.
Foi isso o que Lévi-Strauss fez na sua obra máxima: a série em quatro volumes das Mitológicas, de 1960. Em mais de 2 mil páginas, ele analisa um total de 813 mitos – e suas centenas de variantes – originários de povos do continente americano, desde os bororos, os jês e os tupi-cavaíbas do Brasil até os hopi, os pueblo, os mohawk e os kwakiutl da América do Norte. O objetivo é desvendar a lógica interna dos mitos e mostrar como eles representam a passagem da natureza para a cultura.
No primeiro volume, chamado O Cru e o Cozido, o antropólogo compara a análise conjunta dos mitos americanos à audição de uma sinfonia. Os membros da orquestra, porém, estão separados no tempo e no espaço, e cada um executa seu fragmento sem saber que não tem a partitura completa. Só é capaz de ouvir a música inteira quem estiver à distância. O concerto, segundo Lévi-Strauss, iniciou-se há milênios e hoje uns poucos músicos remanescentes continuam a tocar.
O antropólogo estudou a recorrência de temas e narrativas e reduziu-as a oposições simples como cru/cozido, molhado/seco, macho/fêmea. Influenciado pela lógica binária da informática, que então se desenvolvia rapidamente, o antropólogo sustentou que esses antagonismos que organizam a cultura têm uma origem natural: correspondem à estrutura do próprio cérebro humano.
fonte: superinteressante

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